Quando as Montanhas Escutam
Leituras Espirituais » Para refletir » Quando as Montanhas Escutam

Quando as Montanhas Escutam

A pequena vila, encravada num vale onde as montanhas se fechavam como duas mãos em oração, vivia de terra, rebanhos e dos sinos de uma capela branca. Ali, o velho pastor Anselmo caminhava com um bastão polido pelo tempo, conhecido por sua serenidade que acalmava até cães inquietos. Ao seu lado andava Tomás, um jovem aprendiz de olhos atentos e coração tumultuado por dúvidas. A comunidade era feita de muitos tons: havia quem rezasse cedo, quem confiasse apenas no esforço das mãos, e quem oscilasse entre o medo e a esperança ao sabor das nuvens.

Em tardes claras, Anselmo conduzia Tomás pelas leiras, apontando o segredo das sementes que dormem até a hora certa e do vento que ensina as árvores a criar raízes mais profundas. Dizia que a confiança em Deus não era fuga do trabalho, mas ânimo para não desistir quando a enxada encontra pedra. Tomás, inquieto, perguntava se a oração movia algo além do peito. Ele via comerciantes apressados, lavradores cansados, e pensava se não seria melhor confiar somente na conta exata de sacas, no cálculo das horas e no peso do suor.

Foi então que, no auge da maturação das espigas, o horizonte mudou de voz. Ventos desciam das gargantas das montanhas como se arrastassem rios invisíveis, e um escuro espesso cobriu o céu sem aviso. Trovejou perto, e a colheita, pronta para ser guardada, tremia como criança ao relâmpago. Uns correram desordenados, outros recolheram o que podiam em silêncio, alguns zombaram da oração dizendo que ela não seguraria telhas. Tomás sentiu o coração apertar e pensou que Deus, se falava, falava baixo demais para aquela pressa de nuvens.

Nesse momento, Anselmo ergueu o bastão como quem aponta um caminho simples. No adro da capela, reuniu o povo e propôs duas respostas com uma só alma: primeiro, rezar; depois, agir. Os que podiam rezar ficariam com as velas, os salmos e o terço; os que podiam agir iriam cobrir eiras, reforçar diques, amarrar telhados, abrir valas de escoamento. As crianças levariam panos, os idosos dariam conselhos, os jovens fariam a força. Disse o pastor que a fé era como a corda que une muitas mãos para puxar o mesmo barco contra a corrente.

Quando a chuva caiu, caiu como se o céu precisasse desabar para lembrar a terra do seu limite. O sino tocou compassos de coragem, e o terço ritmou o passo dos que corriam com toldos e enxadas. Enquanto uns erguiam sacas para o celeiro, outros entoavam o Salmo do pastor que não abandona seu rebanho. Tomás, no meio do vendaval, descobriu uma paz nova: ela não apagava o medo, mas organizava o gesto. Ajudou um idoso a firmar uma porta, orientou rapazes a cavarem saídas para a água, e, entre um Pai nosso e outro, percebeu que a confiança abre olhos para caminhos que antes não se enxergavam.

A madrugada chegou sem barulho, como quem pede desculpas por ter vindo tarde. As nuvens se despediram, e o campo, embora ferido, não estava perdido. Houve perdas, sim, mas menos do que o pânico profetizara. A vila juntou-se de novo na capela: repartiram o grão salvo com os que mais tinham sofrido, repararam as casas em mutirão e agradeceram a Deus. Anselmo disse que milagres às vezes não são tempestades que se desfazem, mas corações que se escutam. Tomás entendeu que a fé verdadeira não é espera passiva, nem esforço orgulhoso; é esperança que anda de mãos dadas com a caridade e dá firmeza às pontes que o medo tenta quebrar.

A confiança em Deus floresce na união: reza-se com o coração e trabalha-se com as mãos. Só oração vira palavra ao vento; só esforço vira fardo sem luz. Juntas, oração e ação salvam a colheita do campo e a colheita da alma.

5 1 voto
Article Rating
Inscrever-se
Notificar de
guest
0 Comentários
Mais votado
mais recentes mais antigos
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários

Categorias

Textos recentes

0
Adoraria saber sua opinião, comente.x