O Tempo de Ouvir
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O Tempo de Ouvir

No apartamento 302, as paredes finas guardavam ruídos de vida: panelas, risos contidos, passos apressados. Sobre a mesa quadrada, quatro lugares e, ainda assim, a presença insistente de uma: a Cadeira Vazia. Maria passava a mão no encosto como quem enxuga uma ausência. Na estante, o Relógio Antigo, herdado da avó, marcava mais do que horas; media também as vezes em que cada um falava sem ser realmente ouvido. Na janela, a Plantinha no Vaso esticava folhas em busca de claridade, lembrando que crescer pede água, cuidado e tempo. João chegava com o cansaço dos prazos; Lúcia, com o silêncio cheio de fones, buscava um canto onde coubesse sua vontade de ser e de ser respeitada.

O jantar trouxe arroz, feijão e assuntos adiados. Lúcia perguntou se poderia receber colegas para estudar no fim de semana; João respondeu duro, sem erguer os olhos: precisava de descanso e de silêncio. Maria tentou aparar arestas, mas a conversa virou disputa. O volume subiu, talheres tilintaram como pequenas faíscas, e a batida do Relógio Antigo parecia mais alta, como se lembrasse o tempo que se perdia ali. Lúcia atirou a frase que doeu: “Ninguém me escuta.” João devolveu: “Eu é que sei o que é melhor aqui.” A Cadeira Vazia pesou entre eles, como se abrigasse todas as palavras que ficaram para depois; por um instante, quase se desentenderam de vez, cada um sentando-se na própria certeza.

Maria respirou fundo, tocou de leve a Plantinha e fez, em silêncio, uma pequena prece: “Senhor, dá-nos mansidão.” Depois falou baixo, mas firme: “Vamos fazer diferente. O relógio vai marcar um minuto e, nesse tempo, ninguém interrompe.” E, como quem abre janela para um vento bom, lembrou:

Sejam prontos para ouvir, lentos para falar.

Lúcia tomou a palavra e, com voz arenosa, contou do desejo de ser confiada, do incômodo de decisões que caem sobre ela sem conversa. João, sentado, percebeu a própria pressa, o peso do dia derramado em quem não tinha culpa. Ele confessou o medo de perder o controle, a exaustão que às vezes vira grosseria, e pediu desculpas. Maria, que sonha ensinar a paz do cotidiano, recolheu aquelas falas como quem rega raízes: com gentileza e constância.

Quando o Relógio Antigo terminou seu minuto, o apartamento pareceu maior. Decidiram ali uma pequena liturgia doméstica: toda semana haveria uma “noite de diálogo”, e a Cadeira Vazia ficaria posta, lembrando as vozes que, se não são ouvidas, viram ruído. Lúcia prometeu avisar com antecedência e cuidar do tom; João prometeu escutar antes de decidir e dividir seus cansaços sem transformá-los em ordens. Maria trouxe o regador e, juntos, deram água à Plantinha. O relógio foi novamente dado corda, não para contar perdas, mas para cronometrar reencontros. E a mesa, tão comum, tornou-se um altar discreto onde a caridade se aprende no prato de cada dia.

Lição moral: convivência pede o trabalho silencioso da tolerância e o gesto atento do respeito; quando ouvimos com o coração, o tempo perdido se transforma em tempo de crescer — como uma plantinha que floresce no vaso da casa.

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