O Tempo das Marés
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O Tempo das Marés

Na ilha, o relógio é a maré. Quando ela recua, revela caminhos de areia que não existiam; quando avança, apaga as pegadas de ontem. Ali aprendi que a pressa não encontra porto. A aldeia vive com o compasso de sinos que vêm da pequena capela branca e do vento que vem do leste. Tomás, o líder da comunidade, chama os mutirões com a voz que não precisa de microfone; Lúcia, a anciã, reza devagar o seu terço sob a sombra de um coqueiro, como quem liga a terra ao céu por fios invisíveis de paciência. Tudo parece obedecer a uma sabedoria antiga: os coqueiros esperam o vento para dançar, o mar espera a lua para subir, e a gente, se quer permanecer, aprende a esperar junto. Na ilha, até o silêncio parece ter aprendido a falar na velocidade de Deus.

Rafael e Sofia chegaram a essa lição por caminhos diferentes. Ele, artesão de canoas, vivia com as mãos ardendo para terminar logo; ela, que cultiva um jardim de mandioca e ervas, conhece o tempo das raízes, a demora que amadurece por dentro. Quando Rafael encerrou a madeira da nova canoa, queria lançá-la ao mar antes que o verniz secasse; Sofia pediu calma, lembrando que até o sal precisa de dias para virar cristal nas salinas. Entre um suspiro e outro, o casal esbarrou na velha disputa entre urgência e cuidado. Lúcia, com sua voz de maré cheia, contou-lhes sobre as tartarugas que, pacientemente, esperam as noites certas para depositar seus ovos — e sobre como a ilha sempre repete, dia após dia, a mesma homilia: há tempo para plantar e tempo para colher. Tomás observava, com a experiência de quem já perdeu redes ao insistir na hora errada e já salvou safras por respeitar o aviso do céu.

Foi então que o horizonte se fechou num cinza severo. Anunciaram-se trovões fundos como tambores. A tempestade ameaçava a colheita de coqueiros e a fileira de canoas na areia. Tomás convocou o povo: erguer barreiras de sacos, amarrar trapiches, cobrir as salinas. Rafael, inquieto, quis correr ao mar para resgatar as redes que deixara mais longe; Sofia segurou-lhe o braço — não era hora de desafiar a onda, era hora de proteger a vida e o que ainda podia ser guardado. Houve faísca no olhar, a palavra presa na garganta. Lúcia apenas passou, arrastando descalça a sua tranquilidade, e pousou no ombro de Rafael um conselho que parecia água: paciência não é desistir, é escolher o momento em que o sim serve à vida. Tomás reforçou: primeiro as casas, depois as redes. O povo se reuniu na capela; rezaram o terço enquanto o vento latiu nas janelas. O som das contas batendo parecia metrônomo de confiança. A canoa nova ficou no barracão, protegida, e o casal esperou junto, com as mãos ocupadas em segurar portas e orações.

Na manhã seguinte, o mundo tinha cheiro de terra lavada. Algumas redes se foram, é verdade, mas a canoa estava inteira, as salinas cobertas salvaram seus cristais, a plantação resistiu por causa dos canais de escoamento que Lúcia mandara abrir dias antes. Pela praia, marcas de tartarugas riscavam a areia como caligrafia do segredo — a vida, paciente, continuava escrevendo. Rafael pediu perdão a Sofia; ela sorriu com aquela mistura de cansaço e gratidão que quem ama reconhece de longe. O casal, com a ajuda da comunidade, refez as redes. E, quando finalmente lançou a canoa, esperou o vento certo, a maré favorável, o céu em paz. A primeira pescaria rendeu pouco, mas rendeu paz. E a paz, descobriram, pesa mais que a pressa na balança de qualquer casamento. A ilha, com seus silêncios e cantos de pássaros, ensinou o que nem sempre a cidade lembra: a paciência não é passividade, é confiança ativa, é trabalho que se faz no tempo certo, é o fio que costura o nós do coração antes de remendar o rasgo do mundo.

Paciência é aceitar o ritmo com que Deus amadurece as coisas — e, nesse compasso, aprender a amar sem ferir, a decidir sem romper, a viver sem atropelar a graça.

De vez em quando, quando a maré baixa e os caranguejos saem, Tomás diz que até o mar precisa recuar para voltar com mais vida. Lúcia acrescenta que o amor também. E Rafael e Sofia, agora mais atentos, sabem que esperar não é perder tempo: é permitir que o tempo faça o seu milagre. Talvez seja essa a crônica que a ilha nos oferece todos os dias — entre o som das ondas e o sino da capela — para nos lembrar que, no cotidiano e nos relacionamentos, a paciência transforma o que o medo ameaça, devolve sentido às perdas e torna fértil o que parecia apenas areia. Quem aprende esse ritmo descobre que a esperança tem passos mansos, mas chega sempre.

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