Ao pé de uma serra coberta por pinheiros, havia uma vila. O ar cheirava a pão quente e terra úmida, e no centro da praça repousava um poço de pedra, tão antigo quanto as primeiras orações ditas ali. Os monges guardavam uma fonte alta nas encostas, e dela desciam finos sulcos que alimentavam o poço. As crianças brincavam em volta da borda, os velhos contavam memórias ao som de um rosário, e as mãos calejadas do povo encontravam naquela água o alívio para o trabalho e para a alma.
Entre os moradores havia Tomé, jovem de fala apressada e olhos centelhando ambição. Ele sonhava construir algo grandioso que o gravasse na história da vila. Havia também Dona Lídia, viúva que vivia de costuras, cuja fé era um fio seguro que a prendia ao céu. E havia o Irmão Renato, jardineiro do mosteiro, de passos silenciosos e olhar que via o que os outros ignoravam. Cada um, à sua maneira, buscava o mesmo: a segurança de um amanhã com água e pão, e a paz de um coração não endurecido pela pressa e pelo orgulho.
Um verão severo curvou as hortas e fez o pó levantar-se das estradas como um suspiro cansado. A água do poço, antes translúcida, tornou-se turva, e o balde retornava leve, como se o fundo houvesse se retraído. Tomé, aproveitando-se da aflição, reuniu a praça e anunciou um plano: ergueriam um aqueduto imponente, canalizando a fonte com pedras novas, arcos e placas com nomes. Muitos assentiram, na ânsia de um milagre feito de pedra. Dona Lídia preferiu se calar e rezar, e o Irmão Renato desceu cedo às encostas, levando apenas uma enxada gasta e uma cesta.
Chegou o dia da procissão pelas ruas secas. Velas tremiam, o salmo soava rouco e as crianças, cansadas, arrastavam os pés. Ao fim, correram ao poço, mas só ouviram o eco vazio do balde tocando a pedra. Tumulto. Alguém culpou o céu, outro a culpa dos pecadores, e Tomé ergueu a voz contra o mosteiro, pedindo obras e promessas. O Irmão Renato ergueu a mão, pedindo silêncio. Sem discurso, conduziu a multidão pela trilha estreita até a nascente. Ali, entre raízes e pedras, mostrou-lhes o que ninguém queria ver: os pequenos sulcos estavam entupidos por folhas secas, galhos, poeira e até fitas de procissões passadas. A água ainda brotava, mas faltavam-lhe caminhos desimpedidos.
“Ajoelhem-se”, disse o monge, e ele próprio o fez primeiro. Com as mangas sujas de barro, abriu os sulcos com os dedos, e o gotejar tímido ensaiou um fio. Uma criança o imitou, depois Dona Lídia, e aos poucos todos se abaixaram. Tomé hesitou, sentindo o peso do seu nome, mas cedeu quando viu as mãos trêmulas de uma anciã esforçando-se. As unhas se encheram de terra, alguns cortaram a pele nas pedras, e as roupas limpas se tornaram poeira e suor. Então, como resposta mansa, a água começou a correr, desenhando novamente os caminhos esquecidos.
De volta à praça, Tomé secou os olhos e pediu perdão a quem acusara, prometendo fazer parte das patrulhas discretas que manteriam os sulcos limpos. Dona Lídia sorriu, não por vitória, mas por gratidão, e o Irmão Renato guardou a enxada sem alarde, como quem devolve um instrumento ao seu lugar natural. Naquela tarde, a vila aprendeu o que nenhum arco de pedra poderia ensinar: a água é dom, mas os caminhos dependem de mãos humildes. Onde o orgulho entope, a graça se detém; onde a caridade se inclina, a fonte encontra passagem. O ensinamento ficou gravado sem placa: quem deseja água para muitos precisa primeiro curvar o próprio coração.



