O Nó Que Segurou o Cais
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O Nó Que Segurou o Cais

O porto amanhecia com cheiro de sal e madeira úmida. Gaivotas riscavam o céu enquanto Luca, de oito anos, observava cada barco como quem lê um livro. Ao lado dele, Ana, sua irmã de seis, apontava o dedo para a linha do horizonte, cheia de perguntas que pareciam caber em conchas. Mateus, um jovem de dezessete anos que cresceu entre redes e marolas, arrumava anzóis num canto do cais, o olhar perdido como se buscasse no vaivém da maré um mapa para dentro de si. Foi quando Luca se aproximou e pediu que lhe ensinasse um nó de pescador. Mateus sorriu sem grande convicção, mas seus dedos sabiam o que a alma ainda procurava, e ele apertou um nó de escota com a paciência de quem remenda algo que a vida rasgou.

Ana quis saber por que os barcos saem e sempre voltam. Mateus disse que o mar tem um jeito de lembrar aos homens que tudo é passagem e retorno, como as estações, como o coração quando aprende a perdoar. Trazia no bolso um pequeno terço herdado da avó e, por um instante, apertou as contas como quem segura o próprio rumo. Falou de São Pedro e de redes rasgadas que podem ser refeitas, de pequenas vitórias que nascem de mãos calosas e da esperança que se reapruma a cada aurora. O porto inteiro parecia respirar essa promessa silenciosa, mesmo nos dias em que o peixe era pouco e os olhos pesavam.

O céu, no entanto, fechou-se de súbito. O vento virou lâmina e as primeiras gotas eram pregos na água. Assobios, gritos, correria: era preciso segurar barcos, recolher caixas, trancar portas. Luca agarrava uma corda maior que ele, Ana abraçava um casaco encharcado, e Mateus vacilou ao ver as ondas subirem como muros. Até ouvir a voz pequena de Ana pedindo ajuda para salvar o barco do seu Raul. Então ele correu, ensinando Luca a laçar a amarra no cabeço, os nós firmes como oração. Outros pescadores vieram, e as mãos se multiplicaram. Entre relâmpagos, Ana encostou o rosto no terço de Mateus e murmurou uma súplica simples.

Senhor, leva o medo e fortalece as mãos. Que ninguém se perca.

Uma rajada mais forte arrancou tábuas do trapiche e atirou sal no rosto de todos. Mateus ergueu Ana no colo, atravessou a passarela cambaleante e voltou para ajudar Luca a segurar a proa. Salvou-se o barco do seu Raul e, com esforço de muitos, também uma velha caixa de ferramentas e a imagem de São Pedro da pequena guarita. O sino da capelinha do porto repicou entre trovões, lembrando a todos que coragem não é ausência de temor, mas escolha de permanecer. Cada gesto, por menor que fosse, era vitória contada no silêncio pesado da chuva.

Quando a tempestade finalmente se rendeu ao cansaço, o cais revelou seus estragos: redes rasgadas, cordas partidas, pescados perdidos. Mas as pessoas estavam ali, inteiras. Alguém dividiu pão, outro trouxe caldo quente em panela amassada, e Mateus sentou-se com Luca e Ana no degrau de um galpão, o ar cheirando a mundo lavado. Conversaram sobre as coisas que haviam salvado, tão pequenas e tão imensas. Luca exibiu o nó que aprendera, orgulhoso como quem segura um segredo do mar. Ana disse que o porto parecia respirar de novo. Mateus percebeu que, se o sentido não se encontrava pronto na linha do horizonte, ele nascia no que se fazia junto, numa corda compartilhada, numa oração murmurada, no trabalho do dia seguinte.

Nesse fim de tarde refeito, Mateus deixou o terço nas mãos de Luca por um instante, como quem diz sem palavras que o caminho pode ser aprendido e ensinado. O mar seguia, eterno e efêmero, a prometer recomeços. Entre tábuas secando e risos tímidos, ele compreendeu que a vida é uma rede feita de pequenos nós e que cada um mantém a outra ponta. A lição ficou gravada no cais: quem enfrenta a ventania com coragem e união descobre que as maiores capturas não cabem nas redes, mas nos laços humanos que nos seguram quando o mundo balança.

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