Na cidade à beira-mar, onde o sal prateava as janelas e as gaivotas desenhavam letras no céu, erguia-se um farol de pedras claras que os pescadores chamavam de Olho da Noite. Nesta parábola, o cotidiano tinha voz de maré e ensinava por imagens mais do que por argumentos. Ali viviam Miguel, um jovem pescador inquieto por provar-se maior que as ondas; Bento, o faroleiro de passos mansos, guardião silencioso da luz; e Dona Aurora, tecedeira de redes e de esperanças, que fiava fios azuis como se costurasse o amanhã. Cada um trazia um brilho e um peso, como estrelas que só se reconhecem quando a escuridão chega.
Miguel tinha braços fortes e pressa no peito. O que para os antigos era prudência, para ele soava como acanhamento. Bento, que conhecia os humores do vento, costumava dizer que a luz do farol era como a consciência: guia sem gritar, mas quem a segue não naufraga por dentro. Dona Aurora, de olhos fundos como poços de água doce, simbolizava a esperança; em seus silêncios havia uma fé simples, aprendida entre rezas na capela e o vai e vem das marés. E o farol, imóvel e atento, era imagem de algo maior: a luz de Deus que não negocia com a noite, apenas a vence, uma vez e outra, sem alarde.
Numa tarde que cheirava a mudança, o sino pequeno da capela tilintou mais cedo, e nuvens finas costuraram o horizonte. A vila aconselhou repouso; o anzol que espera pega mais que a rede apressada, diziam. Miguel sorriu com desdém: queria provar que coragem é ir quando os outros ficam. Bento pousou a mão no ombro dele e avisou que a pressa é um vento torto que derruba velas retas. Dona Aurora estendeu-lhe um cordame novo, tecido com um fio azul no centro, e disse: “Quando o coração puxar para longe, lembra-te desse fio; é o caminho de volta.” Miguel partiu ao crepúsculo, jurando voltar com um peixe que fizesse o cais se calar.
A noite veio com capa pesada. A maré virou as páginas do mar de uma vez, e o vento, como pregador severo, ergueu a voz. Um estalo atravessou a encosta: o farol vacilou e apagou, traído por uma falha inesperada. Miguel sentiu a escuridão não apenas do lado de fora; dentro, algo também se apagou. As ondas cresceram como perguntas sem resposta. Ele apertou entre os dedos o fio azul do cordame e murmurou, num sussurro que era quase reza, o Pai-Nosso. No alto, Bento correu, reativando o mecanismo antigo com azeite guardado para urgências, e pediu luz Àquele que não dorme. Dona Aurora chegou com mais óleo, tirado de sua própria lamparina. Num esforço discreto, a chama retornou; pequena, insistente, depois plena. A coluna de luz rompeu o breu, e Miguel, ao longe, percebeu uma estrada feita de claridade rasgando a noite.
Nesse clarão, ele viu também um bote menor em luta, três vizinhos lutando contra o giro da corrente. A decisão pesou como âncora: salvar a própria pressa ou conduzir outros para a luz. Miguel esvaziou de si a vontade de provar grandeza e escolheu tornar-se guia. Ajustou as velas, gritou instruções, fez do próprio casco um escudo contra as ondas até alinhá-los com o feixe do farol. O retorno foi lento, mas firme. No cais, abraços e silêncio falaram alto. Miguel, de joelhos, pediu perdão por ter feito da coragem um palco para o orgulho. Bento sorriu, cansado e contente, e disse que a verdadeira liberdade ama os limites que protegem o amor. Dona Aurora enxugou as lágrimas e guardou o fio azul entre as mãos, como quem recolhe um sacramento.
No domingo, a vila rezou em ação de graças. Miguel descobriu que amadurecer é passar da necessidade de brilhar para o desejo de iluminar. O farol permaneceu sendo o mesmo, mas nele Miguel percebeu a marca da paciência de Deus, que espera sem desistir e acende sem acusar. A lição ficou gravada como sal na pele: ninguém se encontra em mar aberto sem um norte; e o norte, no coração cristão, é luz que nasce da fé, obedece à verdade e serve por amor. Bento repetiu, em voz baixa, um versículo que o vento espalhou pelo cais:
A lâmpada do corpo são os olhos; se teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz.
Moral: O coração inquieto aprende repouso quando se deixa orientar pela luz que não falha. A coragem que salva não é a de desafiar a noite, mas a de escolher, dia após dia, a claridade que conduz para casa, ainda que isso exija voltar, esperar e recomeçar. Quem persegue miragens perde-se; quem busca a luz, encontra.



