Estaleiro de Acordos
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Estaleiro de Acordos

Entre tábuas empilhadas, cheiro de maresia e o compasso dos martelos, o estaleiro respirava como um peito que se enche para começar de novo. Sempre achei que ali, entre reparos e riscos de giz, a vida sussurra um segredo: paz não é um milagre que cai do céu, é um casco que se constrói com mãos pacientes. Nessa tarde, vi chegar Lucas, menino de olhos limpos, seguido de um cortejo improvável: Tico, o esquilo, saltitante como fagulha de alegria; Bia, a tartaruga, com seu passo de oração; Rico, o pombo mensageiro, atento aos ventos; e Leo, o leão, que andava devagar como quem guarda mais do que portas.

Enquanto os carpinteiros riscavam a nova passarela do cais, um rumor de desentendimento crescia. Alguns queriam madeira leve, outros juravam pelo metal resistente. Eu me lembrei de São José Operário, que ensinou Jesus a plantar pregos como quem planta esperança. Paz, pensei, é feito de prumo, esquadro e escuta. Lucas, como quem percebe o nó no cabo, aproximou-se do grupo com a calma de quem sabe perguntar.

— Paz é quando todo mundo pensa igual? — disse Lucas, coçando a testa, como quem afina uma vela de barco.

— Paz é quando ninguém fica sozinho — trinou Tico, o esquilo, brincando com uma fita métrica. — A gente mede junto, ora!

— Paz é dar tempo ao tempo — murmurou Bia, a tartaruga. — Madeira e metal precisam de paciência, como a alma, que só assenta depois de escutar.

— Paz é entender a palavra do outro antes de entregar a sua — arrulhou Rico, o pombo. — Mensagem não é grito, é ponte.

— Paz também pede coragem — rugiu baixo Leo, o leão, de olhos mansos. — Coragem para proteger o que é frágil e corrigir o que está torto, sem ferir.

O rumor virou discussão: estavam a um passo de abandonar a tarefa. Um cabo estalou, um pontalete cedeu, e a maquete da passarela, quase pronta, ameaçou cair. O estaleiro prendeu a respiração. Lucas ergueu a mão, pequeno como um ponto final que encerra um parágrafo e começa outro.

— E se a passarela for de ambos? — perguntou ele. — Metal na base, madeira no abraço dos passos. E se cada um trouxer o próprio dom para a mesma mesa?

— Eu corro e junto as peças — disse Tico, já disparando entre ferramentas. — Alegria é boa cola.

— Eu marco o ritmo — disse Bia, serena. — Sem pressa, mas sem pausa.

— Eu vou e volto com recados — disse Rico, levantando voo. — Eu traduzo o que o medo não sabe dizer.

— Eu fico de guarda e seguro os cabos — disse Leo, firme. — Segurança é o chão do acordo.

O estaleiro voltou a bater como coração: martelo, serrote, guia, parafuso. Os que defendiam o metal aceitaram sustentar os pilares; os amantes da madeira revestiram a superfície com um desenho que parecia oração. No meio do trabalho, alguém lembrou uma Bem-aventurança, e o vento, cúmplice, baixou o tom das vozes.

Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus (Mt 5,9).

A passarela ficou de pé, bela e simples, com o brilho do aço por baixo e o calor da madeira por cima. Não venceu o metal, não perdeu a madeira: ganhou o caminho que unia a margem de cá à de lá. Lucas sorriu, e eu entendi de novo o ofício da paz: ela não dispensa o conflito, mas o atravessa; não elimina as diferenças, mas as alinha como tábuas sob o mesmo prumo. No estaleiro, reparo que a paz é sempre reparo: é consertar o que o sal corrói, é aceitar que toda ponte precisa de manutenção cotidiana.

Quando o sol se inclinou, Leo recolheu os cabos, Bia conferiu cada parafuso, Tico pendurou uma fita em forma de laço, e Rico deu uma volta alta, como selo de carta bem escrita. Lucas sentou-se à beira, os pés quase tocando a água, e deixou o silêncio falar. Nesse silêncio, cabia o barulho do mundo, mas de um jeito novo: como quem ouve sem brigar, como quem aprende sem humilhar, como quem crê que Deus passa primeiro pelo coração que se abre.

Lição moral: A paz não é acordo de apagar diferenças, mas obra paciente de quem escuta, fala com verdade e colabora com coragem. Como num estaleiro, ela se constrói a muitas mãos, se mantém com pequenos reparos diários e se sustenta no respeito e na compreensão mútua.

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