Entre Raízes e Perdão
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Entre Raízes e Perdão

No Bosque Encantado, onde as copas se tocavam como mãos em oração e as raízes se entrelaçavam como uma família em volta da mesa, a luz caminhava em pontinhos, como se anjos tivessem esquecido fios de ouro entre as folhas. Ali, as árvores guardavam histórias e a brisa sussurrava conselhos antigos. Diziam que, no coração do bosque, batia uma pedra: dura, fria, silenciosa. Quem se aproximasse sem coragem e verdade ouviria apenas o próprio eco.

Ana, de olhos que viam o que a pressa não vê, e Miguel, cujas mãos sabiam consertar o que quebrava, adentraram a trilha. Traziam consigo a Caixa de Memórias, presente de uma avó que ensinava a rezar pelas pessoas e não apenas pelos problemas. Nas dobradiças gastas, um cheiro de madeira e pão recém-saído do forno misturava lembranças com promessas. Diziam que, se a caixa fosse aberta com respeito, o passado falaria com a doçura de quem quer guiar, e não ferir.

Ana acreditava que a união poderia curar tudo, como quem confia no amanhecer após a noite. Miguel acreditava nas soluções, nos planos e nas pontes, mas ainda não sabia escutar as águas do próprio rio. Ao abrirem a caixa, pequenas luzes saltaram, como vagalumes. Lá dentro, as memórias descansavam como contas de um terço: alegrias, Natal de risos, tardes de tempestade, discussões que deixaram marcas, seguidas por abraços que nem sempre chegaram a tempo.

Guiados por esse relicário, seguiram até o vale onde o Coração de Pedra impunha caminhos. Surgiram espinhos que se chamavam Orgulho, uma lagoa repercutindo silêncios — o Lago do Não-Dito — e uma névoa de Suspeita que tornava cada gesto mal interpretado. A cada passo, o coração de pedra criava um desafio: uma ponte que cedia quando a voz se erguia em acusação e se firmava quando o ouvido se fazia humilde.

— Eu só quero resolver logo — disse Miguel, impaciente, ao ver a ponte oscilar. — Quanto mais falamos, mais demora.
— E eu só quero que você me ouça — respondeu Ana, com a calma de quem rega algo invisível. — Às vezes, resolver é escutar antes de consertar.

Pararam à beira do Lago do Não-Dito. A Caixa de Memórias se abriu por si, como um confessionário que convida à verdade. Uma voz suave, antiga como o orvalho, pareceu brotar de dentro: Recordar não é morar no ontem; é iluminar o hoje para que o amanhã não herde as sombras. As águas começaram a mostrar cenas: um pedido de desculpas que nunca veio, uma carta que ficou sem resposta, um abraço que a pressa roubou. Ana deixou que as lágrimas caíssem como chuva mansa.

— Quando a mãe chorou sozinha, eu disse que estava ocupada — confessou Ana. — Eu amei, mas calei, e o silêncio se fez pedra.
— Quando o pai se desculpou, eu fiquei duro — disse Miguel, a voz baixa. — Eu queria justiça e esqueci da misericórdia. Achei que o conserto era castigo e não abraço.

No centro de uma clareira, uma rocha em forma de altar guardava o Coração de Pedra. Ele pulsava em vibrações secas, como um relógio sem tempo. Ao aproximarem-se, o chão tremeu, e a voz do coração trovejou sem som, impondo seu último desafio: confessar o que doeu, sem acusar; pedir perdão, sem negociar; amar, sem planilha. A Caixa de Memórias brilhou mais forte, como uma vela pascal protegida por mãos em prece.

— Eu perdoo — disse Ana, pousando a mão na rocha. — E peço perdão por ter guardado meus sentimentos num cofre de medo.
— Eu perdoo — disse Miguel, a mão sobre a de Ana. — E peço perdão por transformar diálogo em ferramenta e casa em oficina. Eu estava consertando paredes, enquanto o teto precisava ser oração.

O bosque respirou. A ponte atrás deles firmou-se. As raízes, invisíveis, pareciam estreitar laços. Rachaduras percorreram o Coração de Pedra como veios de luz. Com cada gesto verdadeiro — um pedir desculpas sem justificativa, um escutar sem preparar resposta, um abraço que não cobra — a rigidez cedia, e das fendas nascia um brilho quente, manso, que lembrava o nascer do sol após uma noite de vigília. Um vento leve, quase litúrgico, passou entre as folhas, e o coração se transfigurou em Coração de Luz.

— Então, a família não é um lugar sem conflitos — disse Miguel, olhando a claridade derramada no chão. — É um lugar onde o amor decide o que as feridas não devem decidir.
— E onde falar é caminho de cura — completou Ana. — Comunicação é como água: quando corre, a vida volta a florir.

Não levaram o Coração de Luz com eles, porque luz verdadeira não cabe no bolso; ela precisa morar onde todos possam encontrar. Deixaram-no aninhado entre as raízes, e o bosque inteiro se acendeu em pequenas centelhas. Prometeram manter a Caixa de Memórias aberta em casa, como quem mantém a mesa posta e a oração acesa. Decidiram que o perdão seria hábito, não evento; que a escuta viria antes da solução; que o amor, como a fé, se aprende praticando. Naquele dia, perceberam que a união familiar é menos um sentimento espontâneo e mais um sim renovado, como quem renova as promessas do próprio coração.

Lição: No silêncio que fere, a pedra cresce; na palavra amorosa e verdadeira, a pedra se faz luz. Comunicação, amor e perdão não apagam as diferenças; transformam-nas em caminho. Unidos, mesmo imperfeitos, caminhamos mais seguros do que sozinhos, e a casa se torna bosque encantado onde Deus passa a cada manhã.

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