A Porta que se Abriu por Dentro
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A Porta que se Abriu por Dentro

Na vila serrana de São Bento, onde o vento cheira a pinho e sino de bronze costura as horas, vivia Tomás, jovem artesão que sonhava ser lembrado pelo portal mais belo da região. Ele alisava a madeira de cedro como quem acaricia um destino, e o nome do prefeito na encomenda lhe prometia influência, moedas e fama. Ao lado da igreja antiga, Frei Lourenço contava o tempo com um sorriso manso, e Dona Maria, viúva, organizava sopas para quem trazia frio nas mãos e fome no coração.

Uma tarde, Tomás entrou na nave silenciosa, onde a lamparina diante do sacrário tremia como se respirasse. O frade, ajeitando o hábito, sussurrou: “Filho, portas não existem para vanglória; existem para deixar passar vida.” Tomás sorriu por educação e voltou ao atelier, tentando ignorar a inquietação que a frase lhe semeou. Mas aquelas palavras se acomodaram nele como uma cunha: e se a obra perfeita, sem amor, fosse só madeira bem polida, vazia de céu?

Na noite anterior à entrega, uma tempestade arrebatou as encostas. A ponte de tábuas que ligava o bairro baixo à praça cedeu, deixando do outro lado crianças, a velha Dona Maria e alguns trabalhadores. A água rugia escura, devorando cada improviso. Tomás via pela janela suas tábuas secas e o portal quase pronto. O relógio corria, e o contrato do prefeito prometia punição pela demora. Entre o troféu e o clamor, o coração dele se estreitou como vereda na noite.

Tomás ajoelhou-se por um instante no piso frio da capela e disse somente: “Senhor, mostra a porta que devo atravessar.” Levantou, pegou serrote e martelo, e teve a coragem de ferir a própria obra. Serrando o cedro que guardara por meses, fez vigas e travessas. Com os vizinhos, lutou contra a chuva até erguerem uma passagem firme. Mãos rasgadas, contrato perdido, vaidade desfeita. Quando o sol rompeu, as pessoas cruzaram a ponte improvisada, e os pequenos de Maria chegaram à praça, com o susto nos olhos e gratidão no abraço.

O prefeito, ao saber do atraso, cancelou a encomenda. Tomás voltou ao banco da igreja sentindo-se quebrado como seus caibros. Frei Lourenço, porém, não falou de falhas; apontou para o altar e disse: “A cada Missa, um pão comum se deixa repartir até virar Presença. O teu cedro se deixou repartir até virar caminho. Isso é linguagem de Deus.” Dias depois, a comunidade decidiu restaurar a porta do templo. As sobras do cedro de Tomás, agora marcadas por chuva e mãos, foram escolhidas para compor o novo umbral. Não havia ouro, mas havia história: cada ranhura contava de uma noite em que a caridade abriu passagem.

No domingo da inauguração, Dona Maria prendeu discretamente um pedaço de fita na ombreira e murmurou: “Bem-aventurados os que perdem para que outros passem.” Tomás encostou a fronte no novo portal e percebeu que o nome gravado não era o dele, mas o de muitos: do pedreiro, do menino que levou pregos, da mulher que trouxe café, do velho que rezou firme. E compreendeu, por fim, que certas portas só se abrem por dentro. Lição: quando o coração escolhe servir, a obra amadurece, o tempo se alarga e Deus transforma madeira em caminho; quem ousa perder por amor encontra, no silêncio de Cristo, o que permanece.

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