A Ponte

Na encosta de uma vila serrana, uma ponte de pedra unia margens que pareciam não falar a mesma língua. Os aldeões diziam que a ponte respirava com o rio e guardava memórias de passos reconciliados. Ao lado, a pequena capela tocava seus sinos ao amanhecer, lembrando que cada novo dia é convite à conversão e à paz. No vaivém do mercado, o vento levava cheiro de pão e de ferro, e a água, por baixo, levava segredos de promessas, culpas e esperanças que a gente não ousa dizer em voz alta.

Bento, carpinteiro de mãos firmes e coração cansado, passava longe da ponte desde a briga com Raul, seu irmão. Um erro de contas e uma palavra precipitada tinham quebrado a confiança entre os dois, e a mágoa, como musgo, se espalhara pelas pedras da alma. Numa tarde, chegou à vila Irmã Clara, peregrina de sorriso manso, pedindo água e oferecendo oração. Ela ouviu o silêncio duro de Bento e, sem o forçar, falou do Pai Nosso, quando pedimos a graça de perdoar como desejamos ser perdoados. Depois, apenas deixou um rosário e uma bênção, como quem planta algo que precisa tempo para criar raiz.

Na semana seguinte, nuvens escuras se juntaram sobre as montanhas, e o rio cresceu com pressa de quem não sabe esperar. Mestre Anselmo correu à praça avisando que Raul ficara do outro lado, tentando salvar ferramentas e tábuas que a correnteza ameaçava. Os caminhos pela margem tinham cedido, e restava apenas a ponte antiga, firme como um juramento antigo, mas exigente como toda promessa verdadeira. Bento sentiu o orgulho gritar que não devia nada a ninguém, enquanto o coração, mais profundo, sussurrava que o amor não deve nada a não ser amar.

Irmã Clara apareceu sob a chuva, pequena e luminosa, rezando um salmo que falava do Pastor que guia no vale escuro. A monja não deu sermão; apenas colocou o rosário na mão de Bento e sugeriu que ele entregasse a Deus a pedra que o pesava por dentro. Lembrou que Cristo perdoou na cruz quando ninguém merecia, e que o perdão é ponte que se pisa antes de se ter certeza do outro lado. Bento olhou a água turva e percebeu que sua mágoa fazia mais barulho dentro dele do que o rio em fúria fora. Respirou fundo, e a primeira oração foi apenas um passo.

Ao entrar na ponte, Bento sentiu o peso ceder como se o chão respirasse com ele. A meio caminho, uma lasca de pedra tinha se soltado, desenhando um vazio que parecia zombar da coragem. Era voltar ou saltar. O carpinteiro, que medira tantas traves, mediu de novo não com o corpo, mas com a alma, e gritou para o outro lado, onde Raul tremia sob a chuva: eu te perdoo, irmão. O salto encontrou apoio, porque quando o perdão chega, uma pedra escondida se encaixa no coração. Mestre Anselmo lançou uma corrente, Raul estendeu a mão, e os três, amarrados em confiança, venceram a travessia enquanto os sinos, pela janela da capela, tocavam como quem diz amém.

Depois da enchente, Bento e Raul repararam a ponte com o ferreiro, mas entenderam que consertavam também o que a língua quebrou e o tempo não curou sozinho. Muitos vizinhos, movidos pelo que viram, procuraram a capela e, entre preces e abraços, retessaram laços antigos. Bento passou a ensinar jovens a talhar madeira e a pedir perdão antes que a mágoa criasse raízes. E toda vez que atravessava a ponte, fazia uma breve ação de graças, lembrando que Deus habita onde a misericórdia encontra casa.

Moral: quem escolhe perdoar aprende a andar sobre águas que antes o afogavam, porque o perdão reconstrói aquilo que a mágoa destruiu e abre caminho para a verdadeira paz.

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