Na vila de São Miguel do Vale, a névoa a cada amanhecer colava-se às pedras da velha ponte como um véu teimoso. A igreja de pedra, com seus sinos silenciosos, guardava a margem mais alta, e do outro lado o casario pobre e os canaviais respiravam umidade e esperança contida. Diziam os antigos que, quando a névoa engolia o rio, ele lembrava os homens daquilo que não se controla: a corrente, o tempo e o coração. Ainda assim, todos viviam sob a sombra consoladora das procissões, dos terços à tardinha e do cuidado que os vizinhos ofereciam sem medir distâncias. Era um lugar pequeno, mas ali se aprendia a medir a vida pelo som das ladainhas e pelo passo firme nas pedras gastas do caminho.
Lira, jovem catequista, atravessava a praça com um cesto de pães quando encontrou Ana, com os olhos vermelhos e a voz quebrada: o pequeno Thiago, doente do outro lado do rio, piorara de repente. O médico não chegaria a tempo. Precisavam do padre para a Unção e, se Deus permitisse, o Viático. Lira sentiu o estômago apertar; anos antes, perdera o pai nas cheias do mesmo rio. O medo tinha nome e lembrança. Mas a caridade tinha um rosto concreto, e ela correu até a casa paroquial, enquanto a névoa se adensava como uma pergunta que não aceita atalho.
Dom Estevão, já curvado pelo tempo, ouviu sem sobressalto e vestiu a estola com a simplicidade de quem conhecia o peso e a leveza dos sacramentos. Pegou o óleo dos enfermos e o corporal, colocou o Santíssimo num pequeno cibório, e olhou para Lira com doçura firme e disse: A fé não nega o medo, filha; atravessa com ele. No caminho até a ponte, o pescador Mateus tentou dissuadi-los: É loucura, padre; a névoa não deixa ver o buraco que abriu na viga. Dom Estevão pediu uma corda, amarrou-a à cintura e deu a outra ponta a Lira. Vamos juntos, com prudência e oração. E ali mesmo rezaram, compassados, o salmo do Pastor que guia pelos vales escuros.
Os primeiros passos sobre a ponte rangiam como confissões antigas. A água, invisível, rugia em algum lugar abaixo, tornando o vazio mais pesado do que o concreto. Lira contava as tábuas, medindo o espaço, até que o nevoeiro pareceu se condensar numa parede branca. O rumor do rio, o sussurro da dúvida, e a memória do pai arrastado pelo inverno fizeram sua perna fraquejar. Ela apertou a corda e sussurrou, em oração humilde: Senhor, eu creio; ajudai a minha pouca fé. Foi então que um som suave cortou o leite pálido da manhã. Um sino soou, uma, duas vezes, como um dedo apontando o rumo. A luz modesta da lamparina desenhou linhas no ar, e ali onde só havia bruma Lira percebeu a sequência de tábuas que restavam. Avançou, chamando o padre, passo a passo, como quem soletra um mistério.
Chegando ao outro lado, foram guiados pelo choro contido até a casa de Ana. O quarto de Thiago tinha cheiro de ervas e urgência. Dom Estevão ungiu a testa e as mãos do menino, pronunciando as palavras com ternura que parecia maior do que a sua própria voz. Depois, com reverência, deu-lhe o Corpo do Senhor, e a sala, que até então era uma margem de medo, tornou-se abrigo. O pranto de Ana passou a ser gratidão, e Lira sentiu que, estranhamente, a travessia dentro dela era mais ampla que a da ponte. Quando voltaram, Mateus comentou que o vento às vezes mexe com coisas esquecidas. Lira respondeu, sem orgulho, apenas com surpresa, que a corda do sino fora cortada no último conserto.
No domingo seguinte, a névoa ainda rondava, mas a vila parecia enxergar melhor. Lira contava a história não como quem prova um milagre, e sim como quem aprendeu a caminhar quando não há mapa inteiro. Ela repetia para os jovens: a fé não é cegueira, nem temeridade; é obediência amorosa que usa a prudência e ainda assim dá o passo que a caridade pede. Nem sempre o rio recua, nem sempre a ponte fica inteira; porém, quando o coração se abre ao chamado do outro, Deus acende sinos por dentro e mostra o suficiente para o próximo passo. A graça não dispensa a coragem; antes, a alimenta e a orienta, convidando-nos a atravessar juntos, com os olhos no Pastor.



