A Luz que Persiste
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A Luz que Persiste

Miguel entrou na igreja para fugir da chuva, mas trazia por dentro um aguaceiro mais pesado. Fazia semanas que rezava e não sentia nada; as palavras lhe pareciam pedras frias rolando no chão. A fé que aprendera com a mãe, entre terços e procissões, agora parecia um barco sem mastro no meio do mar escuro. Ajoelhou-se por hábito, não por vontade, e esperou apenas que a tempestade passasse. Era como se, ao silêncio, respondesse um eco vazio, e ele se perguntava se Deus ainda o via.

Irmão Clemente o observou de longe, alinhando castiçais com gestos que pareciam oração. O sacristão, com a pele curtida de sal e sol, sabia ler o vento nas frestas e as marés nos olhos. Aproximou-se e acendeu a Vela do Coro, fina como a esperança em fim de tarde. Disse, em voz baixa, que certas noites a alma é maré baixa: o chão fica exposto, as algas doem, e os barcos raspam o fundo. Mas é nessa hora que se aprende a esperar o retorno da água, porque o mar tem seu tempo e Deus, seu compasso.

O trovão rompeu as telhas. Uma rajada atravessou o vitral em brumas; a luz elétrica piscou, suspirou e morreu. Várias velas se renderam ao vento que insinuou pelo coro, e a nave ficou mergulhada num escuro espesso. A única luz que persistiu foi a lâmpada vermelha do sacrário, mansa e firme, como o coração que não perde a cadência. Miguel sentiu uma revolta súbita: se Deus é luz, por que o frio por dentro? Por que a oração parecia conversa com portas trancadas? Irmão Clemente, sem alarde, apenas apontou para o pequeno rubi aceso diante do altar: “Ele está. Mesmo quando não O vemos como antes, Ele está.”

Um fio de brisa tocou o pavio da Vela do Coro. Ela vacilou, quase cedeu, mas, inesperadamente, tomou chama novamente, como se bebesse fogo da presença silenciosa do sacrário. O velho sorriu: “A vela não produz a própria luz; ela a recebe e a oferece. A fé não nasce do nosso sentir; ela se alimenta do Fogo que não se apaga.” Miguel escutou sem entender tudo, porém algo nele cedeu, como madeira que decide confiar no mestre carpinteiro. Fechou os olhos, não para escapar da noite, mas para consentir que Deus fosse Deus, ainda sem claridade.

Lá fora, a tempestade seguia sua gramática de raios, mas, por dentro, a água começou a baixar. Miguel sussurrou uma oração simples, quase infantil, pedindo coragem para voltar ao mar e ao cotidiano. Ajoelhou-se diante do sacrário, não buscando calor imediato, e sim oferecendo sua vigília fria como quem entrega um balde vazio para que outro o encha. Sentiu-se então sustentado por algo que não era emoção, mas alicerce. Ao levantar, viu a Vela do Coro estável e pequena, e compreendeu que bastam passos curtos à luz suficiente para o próximo metro.

Na manhã seguinte, o sol percorreu o vitral e semeou cores pelo chão de pedra. Miguel saiu para o cais levando a discreta lembrança do rubi aceso, certo de que a fé é menos fogos de artifício e mais lâmpada que vigia a noite inteira. Decidiu voltar para a confissão que vinha adiando e para a Missa de domingo, não como quem negocia milagres, mas como quem se coloca, fielmente, onde a Graça passa. O mar ainda teria fúrias, e a alma, marés, porém a chama aprendida na noite sabê-lo-ia guiar quando o vento contrário voltasse.

Lição moral: A fé cristã não depende do que sentimos, mas de permanecer diante de Cristo presente, especialmente no sacrário e na vida sacramental. Perseverar na aridez é confiar que a luz é dele e, acolhida com humildade, torna-se claridade suficiente para o passo seguinte.

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