A Âncora no Penhasco
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A Âncora no Penhasco

O penhasco se erguia como um pensamento levado ao limite: uma borda afiada onde o céu tremia e as ondas lá embaixo repetiam, em coro, os mesmos medos de sempre. Lia chegou ali no cair da tarde, quando a luz faz as pedras parecerem mais altas do que são. Carregava uma mochila leve, mas cheia de nomes: prazos, exames, o que pensam de mim, e se eu falhar? Cada nome pesava como ferro frio.

No penhasco, o vento soprava perguntas. E se? E se? As fendas na rocha tinham o formato torto dessas duas sílabas, e se abriam mais quando Lia tentava abraçar o horizonte com os olhos. Ela deu um passo e pequenas lascas se desprenderam, sumindo no abismo com um ruído de talheres caindo no chão da cozinha. O coração, apressado, batia no ritmo de uma escada que não termina.

Foi então que o penhasco respondeu. Não com voz humana, mas com um sussurro vindo de dentro da pedra: Hoje. Foi só isso. Uma palavra curta, como um gole de água no deserto. Lia olhou em volta e viu um ancião reclinado num tronco retorcido, a barba como a espuma do mar e os olhos tão claros quanto o céu depois da tempestade.

— Procurando uma ponte? — ele perguntou, enrolando calmamente um cordame.

— Quero atravessar o que me separa da paz — disse Lia. — Só que o chão cede quando penso no amanhã.

O ancião ergueu a corda. Era tecida por três fios que brilhavam levemente, como se guardassem manhãs intactas: Oração, Palavra e Caridade. No extremo do penhasco, cravada na rocha, havia uma argola em forma de cruz. O metal, gasto de tantos segredos, parecia ter sido beijado por gerações.

— Amarre aqui — disse ele. — Nenhum vento desamarra o que se prende ao que não passa.

O nevoeiro ergueu-se do abismo e tomou forma de pássaros escuros, bicando o ar diante do rosto de Lia. Eram os E se: voavam rápido, faziam barulho e, quando ela estendia a mão para afastá-los, eles se multiplicavam.

— Se eu falhar… — começou Lia.

— Então falhe nos braços de Deus — respondeu o ancião, sorrindo. — Ele não se espanta com quedas, mas ama passos dados com confiança. Escuta o que já te foi dito.

Lançai sobre Ele toda a vossa ansiedade, porque Ele tem cuidado de vós. (1Pd 5,7)

Não vos preocupeis com o dia de amanhã: o dia de amanhã terá as suas preocupações. Basta a cada dia o seu mal. (Mt 6,34)

Lia passou a corda pela argola em cruz e deu um nó simples, desses que aprendemos na infância e nunca mais esquecemos. Do bolso, tirou o terço. As contas, gastas de tanto uso, tinham cheiro de casa. Ela começou devagar: um Creio, um Pai-Nosso, e as Aves-Marias foram caindo no penhasco como sementes claras. Onde caíam, a borda deixava de esfarelar. O chão, ainda estreito, já não traía os passos.

O nevoeiro se inquietou, como se a luz tivesse lembrado a ele seu verdadeiro tamanho. Os pássaros-E se perderam força, soltando penas que viravam sal e desapareciam.

— Mas o abismo ainda está aí — disse Lia, observando a distância.

— Sim — assentiu o ancião. — O abismo entre as tuas preocupações e a realidade sempre vai tentar parecer maior do que é. Ele grita para se fazer ouvir. O que muda é onde firmamos os pés. Os teus, hoje, estão no agora de Deus.

Uma gaivota branca riscou o ar, deixando um traço de silêncio. Lia respirou e percebeu que a trilha seguia pela borda; não era uma ponte para outro lado, era um caminho possível no lado de cá. O vento continuava, mas já não empurrava: enchia as velas do coração.

O ancião estendeu a mão calejada e colocou algo na palma de Lia: um pequeno peso de metal, como uma âncora em miniatura, com a memória de um oratório. Confiança, lia-se gravado.

— Leva — disse ele. — Quando o penhasco dentro de ti tremer, lança essa âncora no Nome que te salva. Reza. Servi. E caminha.

Lia prendeu a âncora ao terço, como quem prende o passado ao horizonte. Olhou mais uma vez para o abismo e, pela primeira vez, o ouviu sem medo. Já não era um monstro, mas um eco. Sorriu ao lembrar-se de Maria, Estrela do Mar, e pediu que a guiasse pelas bordas da vida, onde a coragem nasce da obediência e a paz nasce do abandono.

Deu o primeiro passo. Depois o segundo. Cada passo uma oração curta: Jesus, eu confio em Vós. A trilha não alargou; o coração, sim. E o penhasco, esse professor severo, ensinou sem palavras que a estabilidade não é a ausência de vento, mas a certeza do rochedo sob os pés.

No alto, o céu acendeu as primeiras estrelas. O ancião já não estava ali, ou talvez estivesse em todo lugar onde uma cruz morde a pedra e sustenta o caminho. Lia seguiu, sabendo que, mesmo quando os E se voltassem, encontrariam uma alma ancorada. E o abismo, respeitoso, manteve a distância de quem reconhece: há uma força maior do que qualquer queda.

Na borda do mundo e no centro do peito, a mesma lição: o hoje é o lugar onde Deus nos espera. E ali, no precipício que a mente desenha, brotou um campo de flores humildes, nutridas por lágrimas rezadas. Não era magia. Era graça.

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