A Ampulheta e o Campanário
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A Ampulheta e o Campanário

Na encosta de uma vila remota, um antigo mosteiro se erguia como sentinela do vale, com o campanário a tocar as horas e a lembrar o céu. Ali viviam o Abade Silas, sábio de fala mansa; o Irmão Tomé, jovem aprendiz de olhar inquieto; o Guardião Bento, que acolhia os viajantes; e, acima das telhas, um falcão que descrevia círculos silenciosos. No claustro havia uma ampulheta de madeira escura e vidro antigo. O abade costumava dizer, em voz que parecia oração: O tempo é dom e não dono; aprende a oferecê-lo antes que ele te exija contas.

Num fim de tarde, o Abade Silas confiou a Irmão Tomé a guarda da ampulheta. A cada dobra dos sinos, o noviço deveria virá-la com cuidado, para que nenhum grão se perdesse. Vira a ampulheta não por medo de perder minutos, mas por amor Àquele que te oferece cada instante, disse o abade, impondo-lhe a mão sobre a cabeça. O falcão planou baixo, como se desenhasse no ar o traço invisível das horas. Tomé sentiu o peso doce da responsabilidade e prometeu fidelidade: ficaria atento, olhos e coração na areia.

Antes que a noite caísse, o Guardião Bento ausentou-se para socorrer um camponês ferido, e um viajante chegou à porta, exausto e tremendo de frio. Chamava-se Elias; pedia água e um canto seco. A chuva começava a varrer as pedras do pátio, e os sinos, à distância, ensaiaram seu primeiro chamado. Tomé olhou para a ampulheta e para o homem; temeu que, se abandonasse o posto, desonraria a tarefa. O falcão rasgou o céu com um grito breve, e o jovem sentiu por dentro a urgência de duas vozes: a da contagem rígida dos grãos e a da compaixão que não sabe esperar.

Quando a trovoada se abateu sobre o vale, Elias cambaleou e caiu junto ao poço. O sino gemeu mais uma vez. Tomé apertou a ampulheta contra o peito e murmurou, no oratório do coração: Ensina-me, Senhor, a contar os dias para alcançar coração sábio. Então correu ao viajante, largando o objeto sagrado na borda da mesa. O vidro escorregou, estilhaçando-se no chão, e a areia se misturou à água que invadia o claustro. O jovem improvisou abrigo, aqueceu o homem, dividiu o pão, e velou-lhe o sono, cronometrado não por grãos, mas pelos batimentos de uma caridade nascente. O falcão pousou enfim no peitoril, recolhendo as asas, como quem guarda um segredo.

Ao amanhecer, o Abade Silas encontrou o claustro úmido, a ampulheta quebrada e o viajante respirando sereno. O silêncio pesou; Tomé, com os olhos baixos, confessou sua falha e esperou correção. O abade ajoelhou-se, colheu um punhado de areia nas mãos, e disse: Há perdas que são apenas trocas de medida. O que a ampulheta perdeu, o coração ganhou em eternidade. Depois, voltou-se ao jovem: O tempo que entregaste ao amor não se perdeu; converteu-se em oração mais alta que qualquer sino. O Guardião chegou sorrindo, e os monges, como quem aprende vendo, recolheram em silêncio os grãos, um a um, como se catequizassem o chão.

Nos dias seguintes, Elias recuperou as forças e partiu levando pão e gratidão, prometendo rezar pelos irmãos que o acolheram. Irmão Tomé, agora sem ampulheta, aprendeu a medir as horas pelo compasso da misericórdia, e o campanário nunca mais lhe soou como tirano, mas como lembrete do horizonte que não passa. Quando o vento trazia o canto do metal, ele recordava a lição do abade: o tempo é semente, não algema; quando lançado no sulco do amor, floresce para além do visível. E o falcão, alto no azul, permanecia sinal discreto de que só voa leve quem não carrega o peso da pressa, mas a leveza da fé.

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