O Banco à Sombra do Jacarandá
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O Banco à Sombra do Jacarandá

O parque urbano respirava como uma catedral verde no centro da cidade. Os jacarandás, generosos, derramavam flores roxas sobre os caminhos como se o chão estivesse sendo coroado por pequenos milagres. O lago, redondo e quieto, copiava um pedaço de céu e, de vez em quando, deixava escapar um brilho que parecia vir de constelações adiantadas. Ao longe, o coro desordenado das buzinas se desmanchava no vento e chegava ao parque como um cântico sem letras. Era ali, entre carrinhos de pipoca e bancos de madeira, que o tempo tinha o estranho costume de desacelerar, como um relógio que aprende a rezar.

Senhor Joaquim caminhava devagar, com um passo que mediu muitas histórias. Trazia no bolso um terço gasto e, nos olhos, uma forma antiga de ver o mundo: com espanto e gratidão. Quando se sentou no banco à sombra de um jacarandá, o tronco pareceu endireitar a coluna, como quem quer ouvir conversa boa. Lucas chegou logo depois, a mochila pesando nos ombros e as sobrancelhas amarradas. Era um amigo querido de Joaquim, desses que ainda estão aprendendo a distinguir pressa de propósito. O jovem se jogou no banco com um suspiro. Disse que tinha entrevista de estágio naquela tarde, a mãe esperando um remédio em casa e um arquivo no pendrive que, se sumisse, levaria com ele a esperança recém-nascida de um caminho novo. O celular piscou uma última luz e morreu. Lucas mordeu o lábio, nervoso; o parque, porém, respondeu com um perfume de terra molhada, mesmo sem chuva.

Foi quando o fio da mochila de Lucas rompeu. O zíper abriu a boca e papéis voaram, brincando de gaivotas em terra firme. Um cachorro alegre avançou pelo gramado, roubou um folheto como se fosse troféu e saiu saltando em ziguezague. Um skate passou perto, a borda do vento virou uma página importante, e Lucas se viu levantando folhas em desespero. Na confusão, percebeu o pior: o pendrive, com seu portfólio, não estava onde deveria. A barra do céu escureceu, uma garoa fina ameaçou cair e, para completar, um aviso de greve de ônibus tomava os postes. O coração de Lucas bateu desritmado. Sentou-se outra vez, a cabeça entre as mãos. Falou mais para o chão do que para Joaquim: “Por que tudo dá errado justo hoje? O que mais Deus quer de mim?” O parque silenciou num respeito quase de capela.

Senhor Joaquim não apressou a resposta. Tirou do bolso um pedacinho de pão embrulhado em guardanapo e partilhou, um gesto simples que fez o banco parecer altar. A voz dele veio mansa, mas firme: “Quando a tempestade entra pelos bolsos, meu filho, a gente precisa escolher por onde olha. Há dias em que o milagre é tão miúdo que só a gratidão enxerga. São Paulo nos lembra: em tudo, dai graças. Não é para fingir que está fácil; é para descobrir que Deus não sai de perto quando fica difícil.” Lucas ensaiou um sorriso cético. Joaquim apontou o lago, onde um grupo de patos formava, sem saber, uma cruz caprichosa. “Vamos fazer um trato”, disse. “Conte três coisas pelas quais pode agradecer agora, no meio do caos. E faça isso como quem acende velas em noite escura.”

Lucas hesitou. “A sombra deste jacarandá”, disse, quase por educação. “O ar, que ainda entra e sai de mim.” Fechou os olhos, o coração um pouco menos apertado. “E… sua companhia, seu pão.” Ao pronunciar a última palavra, um jardineiro se aproximou, segurando algo brilhando tímido entre os dedos. “Caiu isso?”, perguntou. Era o pendrive. Lucas o recebeu como quem aceita uma segunda chance. O jardineiro amarrou, com um pedaço de barbante, a alça da mochila, e a garoa desistiu de cair, deixando no ar um cheiro de folhas recém-lavadas. Uma menina apareceu, trazendo o folheto que o cachorro havia sequestrado; a folha vinha marcada por uma pegada úmida que, estranhamente, parecia um coração torto. No tronco do jacarandá, duas formigas carregavam uma pétala roxa com solenidade de procissão.

“Viu?”, disse Joaquim, com um sorriso que não zombava de nada. “A gratidão não muda as circunstâncias de uma vez, mas muda os olhos com que as vemos. E então, sim, alguma coisa do lado de fora também começa a mudar.” O velho rumorejou o terço entre os dedos e Lucas, num impulso, encostou a cabeça no encosto do banco. O parque devolveu um sopro de paz. Um guarda gentil, que passara por ali, ofereceu seu carregador portátil por alguns minutos. Ao religar o celular, Lucas encontrou uma mensagem: a entrevista havia sido adiada em uma hora por causa da greve; pediam desculpas pela confusão. Ele riu, aliviado e envergonhado, como quem percebe que brigou com o vento. “Talvez eu devesse rezar um pouco”, admitiu, surpreendendo a si mesmo. Senhor Joaquim não respondeu com palavras; olhou para o lago, e o reflexo do sol desenhou ali uma via de ouro. Tudo pareceu, por um instante, perfeitamente no lugar.

“Sabe, Lucas”, continuou o ancião, “a cidade corre e nos convida a acreditar que só vale a pena agradecer quando tudo dá certo. Mas a fé ensina outra gramática. Gratidão é escolher o lado pelo qual vamos carregar a cruz de cada dia. Quando agradecemos o pouco, o pouco se revela grande; quando partilhamos o pequeno, o pequeno se torna pão para muitos.” O jovem respirou fundo. Pensou na mãe, esperando o remédio e talvez uma notícia qualquer que iluminasse a tarde. Decidiu passar na farmácia perto do parque e levar também um ramalhete de flores roxas caídas do jacarandá, recolhidas com cuidado, como quem recolhe promessas.

Ao se despedirem, Lucas notou algo impossível de explicar: as folhas do chão, movidas por um vento que ninguém sentiu, arrumaram-se por um segundo na forma da palavra “obrigado”, ainda que imperfeita, ainda que fugidia. Não comentou com Joaquim. Há segredos que o coração prefere guardar como quem guarda perfume. Caminhou até a saída do parque com passos mais lentos. A entrevista continuaria importante, o estudo continuaria exigindo, os ônibus continuariam indecisos; mas havia uma luz nova atravessando o dia comum.

Naquela noite, ao deitar, Lucas repetiu o exercício com que Senhor Joaquim lhe presenteara. Enumerou as pequenas bênçãos que cabiam num bolso: o banco à sombra, o pão partilhado, o barbante do jardineiro, o guarda com o carregador, o adiamento da entrevista, o riso da menina, a paz que veio do nada, o terço rodando nos dedos do amigo, a voz mansa que lembrou a presença de Deus no miúdo. Percebeu que o coração, quando agradece, aprende a reconhecer o Cristo escondido nos corredores da rotina: no vapor do café, na água da torneira, no abraço que espera depois da porta. E dormiu com a tranquilidade de quem sabe que o milagre maior, naquele dia, foi ter escolhido a gratidão.

Lição que ficou: gratidão é uma decisão que clareia o olhar e organiza o mundo por dentro. Problemas continuam existindo, mas perdem o tamanho que a desesperança lhes dá. No dia seguinte, Lucas voltou ao parque para agradecer outra vez, e encontrou Senhor Joaquim sorrindo, como quem já esperava. Sentaram-se sob o jacarandá. De algum lugar, talvez do céu, talvez do coração, uma certeza soprou: enquanto houver um banco, um pão, um amigo e a fé humilde de dizer “obrigado”, nenhuma cidade será grande demais para a esperança.

A gratidão não muda Deus; muda a gente. E, mudando a gente, muda o caminho.

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