Nas Bordas da Muralha
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Nas Bordas da Muralha

A muralha estendia sua espinha de pedra ao longo da cidade, como quem vigia e abraça ao mesmo tempo. Do alto, a vida se mostrava em duas metades: de um lado, o labirinto de telhados que guardava lembranças e contas por pagar; do outro, o horizonte aberto, promessa de um amanhã que Deus tecia com fios invisíveis. A Família Silva subiu devagar. Carlos, mãos encalecidas, tinha o passo firme de quem conhece o peso do pão; Ana levava no bolso um terço antigo, herdado da mãe; Lucas ia por último, o coração cheio de perguntas e olhos cansados de tanto procurar o que faltava. O vento, que ali sempre aparece, parecia sussurrar histórias nos ouvidos, pedindo silêncio para escutar.

— Eu não vejo motivo, mãe — resmungou Lucas, encostando-se na pedra fria. — Nota ruim, estágio que não sai, amigos distantes. Por que agradecer, se nada muda? Ana não correu para o sermão; preferiu o gesto. Tirou do bolso o terço e o virou entre os dedos, como quem conta pérolas de mar. — Nem sempre agradecemos porque tudo vai bem, filho. Às vezes agradecemos para não esquecer Quem caminha conosco quando as coisas não vão. Carlos encostou-se à muralha, olhou o trabalho de suas mãos e sorriu. — Hoje acordei com dor nas costas, Lucas. Mas levantei. E o pão que amassamos não se fez sozinho. Sempre há um motivo, ainda que pequeno.

Mariana chegou ofegante, lenço colorido no pescoço, luz nos olhos de quem aprende a enxergar o que a pressa esconde. Ela e Lucas eram amigos desde o colégio, e, embora partilhassem desafios, caminhavam por trilhas diferentes da mesma montanha. — Trouxe uma lista — brincou, erguendo um caderno. — Não de tarefas, mas de graças. De manhã, escrevo três coisas pelas quais agradeço. Nem sempre é algo grande. Às vezes, é o cheiro do café, um “bom dia”, ou o versículo que me encontra: “O Senhor é meu pastor…” A muralha, com suas cicatrizes, parecia concordar. Ana completou, com voz mansa: — A gratidão é a lente com que a vida volta a ter cor. Sem ela, até o sol nos parece pálido.

Foi então que o vento, como quem pede prova do que se diz, levantou um sopro mais forte. O terço de Ana escorregou-lhe dos dedos e dançou na beira do parapeito, equilibrando-se entre a cidade e o abismo. Por um segundo, o silêncio do mundo coube dentro do coração da família. Aquele terço era mais que contas e cordão; era memória de noites de vigília, de lágrimas enxutas, da avó que rezava por cada neto. Carlos tentou alcançá-lo, mas o rosário tombou por uma fresta entre as pedras, ficando preso em uma saliência, a meio caminho de se perder. Lucas se ajoelhou, enfiou o braço até onde podia, sentiu a aspereza da muralha ferindo a pele. — Pai, segura meus ombros. Mariana, minha mão. — A corrente humana se fez, braço com braço, respiração com respiração. Marian a tirou o cadarço do tênis, amarrou num chaveiro que trazia, e, com a precisão de quem aprende entre quedas e recomeços, fisgaram a cruz pequena do terço. O risco foi real, o tremor também. Quando o rosário voltou às mãos de Ana, os quatro estavam ofegantes, com os olhos brilhando de susto e alívio.

— Quase o perdemos — disse Ana, beijando a cruz. — Quase esquecemos o quanto ele já nos sustentou. Lucas olhou para as mãos do pai, vincadas e firmes; para os dedos de Mariana, tremendo de emoção; para a muralha, que guardava história e perigo, proteção e queda. Dentro dele, algo deslocou-se, como janela que se abre para deixar o ar entrar. — Mãe… — sua voz veio branda, quase um pedido. — Obrigado. Obrigado por não desistirem de mim. Obrigado por esse vento que nos acorda, mesmo assustando. — Ele sorriu, tímido. — Talvez a gratidão seja isso: não negar a fenda, mas segurar mais forte o que importa enquanto o vento passa.

Sentaram-se no alto, dividindo um pedaço de bolo que Ana sempre levava “para o caso de a tarde pedir doçura”. Mariana anotou no caderno: “Hoje, resgatei um terço e ganhei um amigo de volta.” Carlos, homem de poucas palavras, rezou baixinho um Glória. E, ali, a muralha deixou de ser só pedra: tornou-se púlpito discreto, lugar de homilia para quatro ouvintes e um Deus que conhece o peso e o valor das nossas pequenas coisas.

Na descida, Lucas inaugurou um hábito: contar graças. Primeiro, as óbvias, como quem aprende a andar: respirar fundo, ter alguém para ligar, uma tarefa concluída. Depois, as difíceis: o não do estágio que o empurrou a melhorar o currículo; o silêncio de alguns amigos que lhe ensinou a escolher melhor sua voz; a própria inquietação, que o levou àquela conversa no alto. Em casa, ele colou um papel no espelho: “Três motivos para agradecer, todos os dias.” Na semana seguinte, partilhou a ideia com os colegas e, no grupo de jovens da paróquia, propôs um encontro na muralha: subir para ver de onde Deus nos tirou e para onde Ele nos leva.

Algumas coisas começaram a mudar sem clarins nem anúncios. Lucas passou a ajudar Carlos aos sábados, aprendendo o valor de transformar matéria em sustento. Agradeceu Ana pelo arroz bem temperado e pela paciência de quem ama. Enviou a Mariana uma mensagem no fim do dia: “Obrigado por ter sido muro e ponte ao mesmo tempo.” O que era exercício virou visão. E quando outro vento tentou assustar — um imprevisto, um atraso, um medo —, ele se lembrava do terço na fenda da muralha: entre perder e resgatar, a diferença estava nas mãos entrelaçadas e no coração que diz obrigado antes, durante e depois.

Lição moral: a gratidão não ignora as fendas da vida; ela as ilumina. Onde muitos veem pedra que separa, o coração agradecido enxerga muralha que protege e mirante que ensina. Agradecer é escolher a lente de Deus para ler o cotidiano.

“Em tudo, dai graças” (1Ts 5,18).

  • Agradecer pelo que ficou para trás: lições e cicatrizes.
  • Agradecer pelo que está nas mãos: pessoas, trabalho, pão.
  • Agradecer pelo que ainda não veio: esperança e promessa.
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