O Remendo das Redes
Leituras Espirituais » Para refletir » O Remendo das Redes

O Remendo das Redes

Na vila de Santa Marina, onde o sal do vento se mistura ao incenso antigo da pequena igreja. Tomé, pescador de mãos calejadas, vivia a contar o que lhe faltava: o peixe escasso, a rede gasta, o preço injusto. Dona Beatriz, viúva de passos leves, agradecia até pelo fio de luz que entrava pela janela. O padre Ângelo repetia, com voz de sino: a palavra Eucaristia quer dizer ação de graças; quem aprende a agradecer vê o invisível sustentando o visível.

Numa semana de mar avaro, Tomé voltou de mãos vazias e coração pesado. Álvaro, o comerciante mais rico do porto, o recebeu com um olhar de pedra e lembrou os juros, como quem cobra do mar a água emprestada. Tomé saiu indignado, chutando conchas e lembranças. No caminho, encontrou Dona Beatriz repartindo um único pão com uma criança. Ele zombou do pouco, mas ela sorriu e disse que o pão repartido sempre encontra um rumo. O padre convidou a vila para uma missa de ação de graças, mesmo sem abundância; Tomé, ferido, preferiu o silêncio dos próprios nós.

Na madrugada seguinte, o céu derramou uma tempestade que parecia conter todas as dívidas do mundo. Raios cortavam a escuridão e as ondas subiam como muralhas. Tomé lutou com o leme, perdeu parte da rede e chegou à praia com o barco vacilante. Viu, na areia, o pequeno crucifixo da capela, levado pela água, e pensou que talvez Deus também tivesse descido para ajudar a segurar a vila. Os sinos tocaram, e um coro de vozes se ergueu do adro, cantando um antigo hino de louvor. Dona Beatriz, molhada e sorridente, aproximou-se com seu último pedaço de pão, e disse em voz mansa: Gratidão não é negar a dor; é lembrar-se de Quem caminha conosco dentro dela.

No coração de Tomé, algo rompeu e, ao mesmo tempo, foi remendado. Álvaro, que perdera parte do armazém à fúria do vento, desceu ao porto acusando, medindo prejuízos, proclamando faltas. Tomé esteve a um passo de devolver pedras com pedras, mas acabou seguindo as vozes até a igreja. No altar, uma mesa pobre e um vinho simples esperavam a assembleia. Tomé colocou sua rede rasgada aos pés da imagem do Crucificado, como quem entrega o próprio fôlego. Ao som do silêncio, entendeu que agradecer não é adular o destino, mas reconhecer a Fonte. O padre rezou pela vila e, ao final, recordou um versículo que desceu como lâmina de luz.

“Em tudo, dai graças; pois esta é a vontade de Deus para vós em Cristo Jesus.” (1Ts 5,18)

Daquela missa nasceu um milagre cotidiano: não peixes pulando do nada, mas mãos se oferecendo sem cálculo. O pouco de cada um virou cesta grande. A vila remendou, primeiro, as redes, depois os telhados, e por fim as mágoas. Tomé liderou um mutirão para levantar o depósito de Álvaro, que chorou envergonhado ao perceber que a gratidão pode vir do lado de quem nada lhe devia. Quando voltaram ao mar, os barcos não estavam novos, mas navegavam melhor porque os corações tinham aprendido a mesma arte das redes: fios quebrados, unidos, seguram mais que fios isolados.

Passaram-se meses, e Tomé criou um hábito: antes de lançar as redes, levantava os olhos e sussurrava um obrigado. Levava pão a Dona Beatriz, e ela respondia com a bênção de quem já viveu bastante para saber que a abundância não se mede em quilos. Álvaro aprendeu a perdoar juros e a exercer justiça. A vila, sem se dar conta, passou a celebrar a Eucaristia como escola de gratidão: oferta do pouco e do muito, partilha de dores e alegrias, reconhecimento da Presença que não nos abandona. E a lição ficou clara como a maré baixa revelando o fundo: a gratidão não muda o mar, mas muda quem navega; transforma a escassez em mesa, a dívida em aliança, o lamento em caminho. Quem agradece, encontra sentido até nas ondas que não escolheu.

5 1 voto
Article Rating
Inscrever-se
Notificar de
guest
0 Comentários
Mais votado
mais recentes mais antigos
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários

Categorias

Textos recentes

0
Adoraria saber sua opinião, comente.x