O Cais das Duas Margens
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O Cais das Duas Margens

À sombra das figueiras e com o rumor do grande rio que cortava aldeias distantes, vivia um vilarejo cindido por velhos agravos. De um lado, os canoeiros; do outro, os tecelões. Uns juravam que a água lhes pertencia, outros que o vento lhes devia obediência. No centro caminhava um ancião chamado Simeão, cuja palavra era ponte, e um jovem inquieto, Tomé, que trazia nos olhos a pressa de quem deseja ouvir a resposta antes mesmo de formular a pergunta. Os aldeões evitavam a praça em certas manhãs, temendo cruzar olhares com antigos desafetos, mas o rio seguia, levando notícias de outras margens e lembrando que ninguém viaja sozinho.

Simeão convidou Tomé a vigiar a corrente na aurora. Olha as duas margens, disse com calma; parecem opostas, mas é entre elas que a água encontra caminho. Tomé replicou que a aldeia precisava de um muro para se proteger dos de cima, suspeitos de roubar a pesca. O ancião sorriu: Um muro na água é dique sem escuta; guarda uns por um tempo e, quando rompe, arrasta a todos. O rapaz mordeu os lábios, achando dura a lição, pois o ressentimento lhe parecia mais sólido que o conselho. O sol desenhava flechas de ouro sobre a superfície, e cada reflexo era chamado à paciência, um convite a enxergar o outro lado que o olho estreito não alcança.

Chegou o dia do mercado e, com ele, a poeira erguida pelas desavenças. Um velho acordo sobre ferramentas foi reaberto com gritos e comparações amargas, e as bancas perderam o riso. Simeão então contou uma parábola de pedras: se cada rocha no leito guardar o golpe que recebeu, o rio parará; se, ferida, ceder um pouco de si, a água lhe polirá a dor e seguirá. Alguns riram, outros baixaram os olhos. Tomé, dividido, perguntou a si mesmo se ceder não seria trair os seus, e a dúvida lhe pesou nas mãos. O ancião respondeu com silêncio e com um gesto para o fluxo incessante, como quem aponta uma escritura escrita em correnteza. A feira seguiu tensa, e as canções ficaram presas na garganta.

Naquela noite, tambores longínquos soaram do alto curso: chuvas pesadas haviam caído nas montanhas. O grande rio engrossava, e seus afluentes, como veias em esforço, traziam o rumor de uma enchente iminente. A barragem que protegia a planície rangia; se cedesse, nada distinguiria canoeiros de tecelões. Foi então que Tomé correu pela vila clamando por ajuda, enquanto Simeão, com voz firme, distribuía tarefas: cortar estacas, erguer barreiras de sacos, amarrar barcos em fileiras, abrir canais de desvio para aliviar o peso das águas. Mensageiros seguiram por trilhas até as aldeias vizinhas, pedindo mãos e cordas, pois a maré ameaçava a todos sem distinguir nomes e bandeiras.

As gentes de margens opostas chegaram com lamparinas e ferramentas. Mãos que evitavam tocar-se passaram a medir juntas a distância das amarras; línguas acostumadas a ferir descobriram a força das palavras de encorajamento. Uma anciã ensinou nós marinhos a quem só conhecia tear; um rapaz de outra aldeia emprestou sua melhor pá ao adversário de feira. Tomé, ofegante, percebeu que ninguém se salva sozinho e que a coragem cresce quando repartida. A noite se encheu de passos, orações sussurradas e cordas que cantavam contra a corrente, enquanto o ancião lembrava a todos que cada gesto paciente abria espaço para a água seguir sem devastar.

A aurora encontrou a barragem inteira, as casas molhadas porém de pé, e o povo reunido na mesma praça que antes evitava. Simeão, com as mãos ainda úmidas, disse que, quando a água ameaçou a todos, lembraram-se do que sempre foi verdade: o outro não é a corrente que arrasta, é a margem que completa. O silêncio que se seguiu foi de assentimento. Muitos pediram perdão, outros ofertaram reparos. Prometeram continuar se escutando nos dias de bonança, pois a concórdia que nasce apenas no perigo definha quando o sol volta. As lembranças da enchente tornaram-se conselho vivo, mais forte que qualquer juramento antigo.

Lição: perdoar e cooperar não é fraqueza, é abrir canais para que a vida circule entre povos e tempos. Onde o perdão desata nós, a cooperação constrói pontes; e sobre essas pontes caminha uma paz duradoura, capaz de atravessar aldeias e continentes. Quem represa mágoas multiplica perigos; quem partilha trabalho e escuta dissipa tempestades antes que cheguem. Assim, cada coração que se reconcilia torna-se margem segura para muitos, e o mundo aprende a respirar como um mesmo rio.

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